Para pensar...

Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”

Amyr Klink

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Mundo Árabe: Em crise?

Dá-se o nome de Mundo Árabe ao conjunto de países africanos e do Oriente Médio que, além de predominantemente islâmicos, tem uma cultura árabe (influenciada por peculiaridades locais) e fazem do árabe seu idioma oficial. São ao todo 22 países, dos quais 21 têm soberania (independência); a palestina (formada pela Faixa de Gaza e Cisjordânia) ainda não constitui um estado propriamente dito, devido à ocupação israelense na Cisjordânia.

Os estados árabes têm uma história política bastante recente, com exceção da Arábia Saudita (criada em 1932), todos somente alcançaram a independência plena após a Segunda Guerra Mundial, quando deixaram de ser colônias ou protetorados da Inglaterra, França e Itália.

O Mundo Árabe compreende atualmente 8 monarquias e 13 repúblicas. As monarquias (com exceção da Jordânia, que possui um regime razoavelmente democrático) são todas autoritárias, tendo na Arábia Saudita seu modelo mais extremado. Das repúblicas, o Líbano constituía um modelo de democracia, mas esse quadro foi alterado após uma sangrenta guerra civil que se prolongou de 1975 a 1990. As demais repúblicas são todas autoritárias ou mesmo abertamente ditatoriais, sendo que a Somália, desde 1991, não tem uma autoridade nacional estruturada.

A atual crise do Mundo Árabe começou em janeiro na Tunísia, quando intensas manifestações obrigaram o ditador Zini bem Ali – no poder havia 23 anos – a fugir. Esse fato repercutiu no Egito, onde a pressão popular provocou a renúncia do general Hosni Mubarak, ditador desde 1981. Pouco depois, irrompeu na Líbia uma rebelião contra o coronel Muammar Khadafi que, embora curiosamente não tenha cargo oficial, governa a Líbia com mão de ferro desde 1969.

Refletindo esses acontecimentos, vêm ocorrendo manifestações contra diversos outros governos árabes, notadamente no Iêmen, no Bahrein e na Síria – países nos quais a repressão tem sido mais dura.

Embora a maioria dos analistas queira ver nesses movimentos uma grande crise política que levará à derrubada dos regimes autoritários que pesam sobre quase todo o Mundo Árabe, é difícil fazer um prognóstico seguro devido às particularidades de cada país: condições econômicas, diferenças étnicas, predomínio dos laços tribais sobre o sentimento nacional, conflitos religiosos e – mais que tudo – a ausência histórica de uma tradição democrática nos moldes ocidentais.

Indubitavelmente existe uma crise, e ela produzirá desdobramentos. Mas dificilmente os resultados serão homogêneos. E o Mundo Árabe, apesar de sua grande contribuição cultural para a humanidade, continuará a ser um mosaico que contraria a aparentemente inexorável tendência à globalização.

Fonte: Portal Objetivo

Religiões do Oriente Médio e Ásia: o Islamismo

Quando estudamos o Oriente Médio, a Ásia de Monções e o Extremo Oriente, verificamos uma grande variedade étnica, cultural e religiosa. Tal fato chama a atenção pelas suas especificidades. O Oriente Médio é marcado pela existência das três maiores religiões monoteístas: o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo. Na Ásia de Monções (Sul e Sudeste Asiático), destacam-se o Bramanismo na Índia, o Lamaísmo no Nepal e Butão, além do Tibete, na China. Também existem muitos adeptos do Budismo. Em países como Tailândia, Vietnã, Japão, destaca-se o Budismo e, na China, o Confucionismo, além do Xintoísmo.As características religiosas marcam a cultura e o comportamento desses povos, imprimindo traços específicos em suas sociedades, o que as diferencia de outras civilizações.As religiões moldaram as sociedades e sua visão do mundo desde o início da História. Elas estão intimamente ligadas aos fenômenos de identidade, cultura e civilização. Portanto, além da dimensão espiritual, tiveram função política ou geopolítica, tanto como pacificadoras quanto como motivadoras de conflitos, de acordo com o momento e local.Acompanhe a seguir algumas características do Islamismo:A religião do Islã é a aceitação da obediência aos ensinamentos que Deus revelou ao seu último profeta, Muhammad (Maomé). A história do Islamismo está diretamente ligada a Maomé, nascido na cidade de Meca (Arábia Saudita) e membro da tribo Quirache. Ele viveu e cresceu entre mercadores.Aos 40 anos, começou sua pregação, quando, segundo a tradição, teve uma visão do anjo Gabriel, que lhe revelou a existência de um Deus único (Alá). Maomé casou-se com Khadija, a qual investiu toda sua fortuna na propagação da nova doutrina. Maomé passou a pregar e propagar a mensagem, enfrentando oposição. Foi perseguido em Meca, o que o obrigou a emigrar para Medina, em junho de 622, episódio conhecido como Hégira (emigração), marco ndo calendário dos muçulmanos.O livro sagrado do Islamismo é o Corão ou Alcorão, que contém as mensagens transmitidas por Deus a Maomé, reveladas entre 610 e 632. A obra divide-se em 114 suras (capítulos), compostas de versos. A segunda fonte de ensinamentos é a Suna, conjunto de preceitos baseados noshadiths (ahadiths), relatos transmitidos pelo profeta.Dois grupos distinguem os praticantes do Islamismo: os xiitas e os sunitas. Os sunitas dividem-se ainda em grupos menores (hanafitas, malequitas, chafeitas e hambanitas) e são os seguidores da tradição do profeta Maomé. Após sua morte, em 632, sua obra foi continuada pelo seu tio All-Abbas. Os xiitas são partidários de Ali, marido de Fátima, filha de Maomé. Foram os líderes da comunidade que deram prosseguimento à obra de Maomé.O Islã fundamenta-se em cinco pilares: testemunho da fé, oração, pagamento do zakat (apoio aos necessitados), jejum no mês de Ramadã e peregrinação a Meca (Hajj)

Fonte: Portal Objetivo

As religiões pelo Mundo

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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Qual a diferença entre bioma e domínio morfoclimático?

Resumidamente: Enquanto o BIOMA leva em consideração os fatores bióticos, ou seja, populações biológicas que habitam um determinado local, o conceito de DOMÍNIO MORFOCLIMÁTICO, proposto pelo geógrafo Aziz Ab'Saber, leva em consideração, como o nome sugere, os aspectos físicos do relevo, sobretudo a interação entre o clima e forma de um determinado local.
Ex: O Bioma Caatinga trata das espécies de fauna e flora que pertencem à trechos da Região Nordeste, já o Domínio Morfoclimático da Caatinga, trata do clima semi-árido que influencia na configuração do relevo, de estrutura cristalina e tal.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Conflitos do Sudão (Darfur)

Introdução
Os conflitos que se têm desenvolvido no Sudão, inserem‑se na categoria de conflito persistente, pela sua dura­ção prolongada e pelos motivos que lhe têm estado subjacentes, que radicam, essencialmente, em questões de reconhecimento mútuo.
O Sudão situa‑se numa região onde se assiste a grandes convulsões e violên­cias, por variadas razões. Incluimos nesta região o Chade, a Repúbli­ca De­mo­crá­ti­ca do Congo, o Uganda, o Ruanda, a Eritreia, a Etiópia, a So­má­­lia, onde existem problemas resultantes de conflitos e de carências básicas.
De facto, tem sido nestes países que as consequências dos conflitos, e tam­bém dos fenómenos naturais, se têm feito sentir, de forma dramática, ten­­do provocado, entre outros efeitos de natureza econó­mi­ca associados à so­­bre­­vivência, os maiores deslocamentos de populações dos tempos actuais, com to­das as questões humanitárias que lhes estão associadas.
Por esta última razão, e também pelo envolvimento da comunidade interna­cio­­­nal, principalmente através das Nações Unidas, da União Europeia, da União Africana e dos Es­ta­­dos Unidos da América, e pelos ape­los para uma intervenção mais activa da OTAN, para além de outras questões de seguran­ça que decorrem da situa­ção, por força do factor geoestratégico, é de grande interesse pro­cu­rar­mos com­pre­­en­der esta realidade. Daí a justifica­ção para este exercício.
Darfur é neste contexto o nome que actualmente é mais publicitado pela co­mu­nicação social, fa­zen­do‑se eco das declarações, das posições e das acções to­ma­das pela comunidade internacional, principalmente, no âmbito das Na­ções Uni­das e da União Europeia.
Interessa pois começar o presente texto pela descrição breve da situação real deste conflito, para a seguir procurar o seu enquadramento num con­tex­to mais vasto, no próprio Sudão e na região onde está inserido.
A questão do Darfur
Darfur é uma região do Sudão com cerca de quinhentos mil quilómetros qua­dra­­dos, com um comprimento máximo da ordem dos mil e duzentos quilómetros e uma largura máxima de cerca de quinhentos quilómetros, com uma população da ordem dos seis milhões de pessoas.
Darfur, que é um pouco mais pequena que a França, faz fronteira com a Lí­bia, com o Chade e com a Repúbli­ca Centro‑Africana.
A região que constitui um planalto árido, deserto arenoso a norte e floresta de arbusto a sul, é pobre, com agricultura de subsistência, produzindo cere­ais, fruta, tabaco e gado, essencialmente.
Alguns analistas consideram no entanto que, com excepção da zona desérti­ca, existem muitas potencialida­des na agricultura, dado que existe água sufi­ci­ente e os terrenos são de quali­da­de razoável; existem muitas bar­ra­gens de ir­ri­ga­ção que estão parcialmente destruidas e não existem apoios para a capta­­­­ção de água do subsolo, que existe em suficiência. Na década de no­ven­ta, por exemplo, a produção de gado no Darfur rendeu cerca de 500 mil­hões de dólares por ano.
A partir de 1999 começaram os trabalhos que permitiriam a exploração de pe­tró­leo no sul do Sudão, de acordo com as prospecções iniciadas cerca de trinta anos antes. A conclusão do pipeline que liga os principais poços do sul ao Mar Vermelho, junto a Porto Sudão veio possibilitar a exploração e a expor­ta­ção.
Na região do Darfur, numa pequena parte do território no sul foram atribui­das uma ou duas zonas de concessão do bloco seis, que se alastra para outra região do Sudão, e que está a ser explorado por uma companhia chi­nesa.
Darfur é a terra dos Fur, ou fourrás, tribos africanas sedentárias, vivendo da agri­cul­tura de subsistência, que lhe terão dado o nome. Mas existem ainda ou­tras tribos africanas igualmente sedentárias como por exemplo os Masali­tes e os Zaghawa.
Para além destes povos, existem aqui igualmente os “ba­gga­ra”, be­­dui­nos, nó­ma­das, vivendo fundamentalmente da pastorícia. Algumas destas etnias pro­longam‑se no vizinho Chade.
Os povos assumem algumas diferenças, embora possa ser difícil a um es­tran­geiro, apenas pela aparência, notar essas diferenças, pelo menos nalgu­mas áreas.
O que é um facto é que se assumem como diferentes. A dife­ren­ça mais notória entre estes povos é o seu estilo de vida, uns agarrados ao direito de pro­prie­dade da terra, outros reivindicando o direito universal à pasta­gem do ga­do – inicialmente esta diferença teria sido a essencial para justificar o con­flito, contudo, com o tempo foram‑se apelando para outras, de natu­reza étni­ca, religiosa e política. É importante notar ainda a circunstância de se falarem doze dia­lectos diferentes, neste mo­sai­co étnico.
De facto, uns consideram‑se africanos, outros árabes, uns muçulmanos, ou­tros cristãos, outros ainda professando outras crenças, e são estas clivagens que normalmente estão associadas ao conflito mais vasto no interior do Su­dão.
Contudo, é preciso referir que o conflito é muito mais de natureza tribal e política, de reivindicação da terra, e da percepção que uns são autóctones e outros serão estranhos, embora outras diferenças possam vir a reforçar es­tas na busca de legitimidade para a acção violenta.
A história desta região tem sido uma história de conflito quase permanente entre as várias tribos, e entre estas e os reinos vizinhos, designadamente o Su­dão e o Egipto.
Darfur esteve constituido em Reino, durante muitos sé­cu­los, embora com a fra­gmentação de poder característica da forma de vida das populações que o habitavam, e também imposta pelas condições naturais relativamente agres­tes.
Desde o século XIII foram três as dinastias que dominaram: a Dajo, até ao século XVI, a Tunjur até ao século XVIII e a Keira, que foi derrotada pelos turcos em 1874.
O Islão entrou nesta região no século XIV, constituindo um factor de agre­gação política; contudo, a organização política trazida pela influência da tri­bo que o propagou baseou‑se numa lei que não era exactamente a lei corâ­ni­ca. Só por volta de 1700 é que o Islão foi considerado como a religião do Estado.
Foram essencialmente razões de partilha do Reino que levaram às grandes di­vi­sões internas, o que deu origem a uma guerra interna generalizada duran­te os anos de 1785 e 1786, e que conduziu a uma perda de importância e de estatuto e portanto a uma apetência à ocupação e influência por parte dos vizinhos.
O reino do Darfur ajudou Napoleão nas suas campanhas no Egipto, especial­mente com o forne­ci­mento de escravos – Darfur era de longa data um centro de comércio de es­cra­vos, e as tribos africanas competiam com as tribos árabes neste negó­cio, sendo o escravo o elemento de raça negra.
Mas para além da exportação de escravos, Darfur era também um entreposto comercial com alguma importância na região, por essa época.
Apesar da ocupação otomana, que foi tardia em relação aos reinos de leste do Sudão (no leste teve lugar a partir de 1820), nunca deixou de existir re­sis­tên­cia por parte das populações de Darfur a essa ocupação, desenvolven­do‑se uma guerra permanente de guerrilha.
Em 1875 sofreu a ocupação egípcia e depois britânica, mas em 1899 re­cu­pe­rou a sua autonomia.
Em 1916 aliou‑se ao Império Otomano, declarou guerra à Grã‑Bretanha, em decorrência dessa aliança, e por isso sofreu as consequências da sua atitude no final da Guerra com a perda do seu estatuto político, e com a ocupação egipcio‑britânica. No entanto, o ocupante político assumiu sempre uma certa autonomia, relativamente ao vizinho Sudão.
Com a independência do Sudão em 1956, integrou o território deste Estado, embora tenha continuado a resistir a essa situação de facto. Nos princípios da década de oitenta verificou‑se uma revolta contra Cartum que foi anulada, e em 1994 o Gover­no Central decidiu constituir três estados federais em Dar­­fur, integrados no Estado do Sudão.
Contudo, a grande maioria dos governadores destes esta­dos, assim como os qua­dros mais elevados da Administração na região, são de origem árabe, se­gun­do a denúncia dos grupos revoltosos.
Naturalmente que o conflito actual no Darfur tem alguma influência das guerras civis sudanesas, designadas como guerras entre o Norte e o Sul (Dar­fur está a Oeste mas está inserido no mesmo tipo de clivagem, isto é, reage igualmente contra o centro), que fo­ram objecto de um início de resolução a partir de princípios em 2002, processo que culminou no cessar fo­go de Janeiro de 2005. Os dissidentes de Darfur sentiram‑se então motiva­dos a seguir um processo idêntico aos seus irmãos do Sul.
Em 2003 criam‑se dois grupos rebeldes no Darfur, o “Justice and Equal Mo­ve­ment” e o “Sudan Union of the Marginalized Majority” de base Zaghawa, e outros dois designados por “Sudanese Liberation Army” e “Sudan Fede­ral Alliance”, de base Fur, com vista à recuperação da sua inde­pen­dên­cia, com o argumento da existência de opressão e de discriminação, e falta de respeito por parte do Governo Central relativamente à população não árabe.
De facto, a região Darfur é a região menos desenvolvida do Sudão, menos ainda do que o Sudão do Sul. Por exemplo, enquanto que no norte do Sudão a taxa de escolaridade é de cerca de 88%, no Darfur é de 31%; enquanto que o número médicos por cem mil habitantes é de 16 no Sudão (46 em Cartum), no Darfur é de apenas 1,9; enquanto que no Sudão o número de camas de hospital por cem mil habitantes é de 74 (111 em Cartum), no Darfur é de cerca de 25. Estes números, que se poderiam aplicar em relação a outros in­di­cadores, são elucidativos quanto às diferenças, que a resistência ao gover­no central atribui à falta de vontade política deste, e ao tratamento diferenci­a­do que dá às populações.
A guerra começou em Fevereiro de 2003; a informação sobre os números de mor­tos provocados directamente por acções de guerra e pela fome é diferen­te, consoante as fontes, variando entre cerca de quinhentos mil e cento e oitenta mil, em dezoito meses. O número de deslocados será da ordem dos dois milhões de pessoas (cerca de um terço da população), dos quais cerca de duzentos mil se encontram em campos de refugiados no Chade.
As razões invocadas pela rebelião centram‑se na discriminação do Go­verno Central relativamente às populações não árabes, e na convicçaõ de que só a recuperação da independência poderá trazer tranquilidade e desen­volvimento à população.
Os primeiros ataques dos grupos rebeldes acima mencionados incidiram so­bre instalações e forças go­ver­na­men­tais. Estes ataques apanharam o Gover­no de surpresa, que retaliou com bombardeamentos aéreos em apoio de mi­lí­cias árabes, as “Janjaweed”, de re­cru­ta­mento regional.
As forças militares governamentais existentes na região não mereciam grande confiança do Governo Central porque eram recrutadas localmente e porque não dispunham dos meios adequados, nem da disciplina e treino suficientes para fazer face à situação – daqui o recurso à constituição das milícias, que o Governo no entanto nega, junto da comunidade interna­cio­nal.
São de facto estas tribos que têm lançado o terror nas populações não árabes. A prova da discriminação destes ataques reside no facto de povoa­ções afri­ca­nas serem completamente destruidas e, ao lado, a menos de quin­hen­tos me­tros, as povoações árabes permanecerem incólumes às inva­sões bár­baras daqueles grupos guerreiros, segundo relatos dos observadores das Nações Unidas.
Existem portanto aqui duas clivagens que se sobrepoem: por um lado a dife­ren­ça entre populações au­tócto­nes com uma memória de violência muito for­te entre elas, por outro, a luta contra o Estado Central tendo em vista a independência. O conflito apresenta assim várias vertentes:
– a étnica, na medida em que as ac­ções violentas têm de facto como alvo as populações civis, e são dirigidas de uma etnia contra a outra etnia, em que o Estado é aparentemente neutral, assumindo‑se como incapaz para garantir segurança e promover o bem‑estar;
– a política, dado que a motiva­ção dos rebel­des é declaradamente a de recu­pe­ra­rem a autonomia política pa­ra o Darfur;
– a económica porque se trata dum conflito entre pastores (pre­do­mi­nante­mente árabes, com tradição nómada) e agricultores (não árabes, tradicional­mente sedentários), vivendo (ou procurando) (n)a terra arável onde existe(a) água disponível.
As incursões das “Janjaweed” criaram um clima de insegurança perma­nente nas populações africanas, apesar de também existirem vítimas árabes (em­bora em numero insignificante), e outros grupos atacantes não árabes, (igual­mente em número muito baixo) embora muito mais fracos e produzindo efeitos muito menos dramáticos.
Esta situação de impunidade, classificada por alguns como limpeza étnica ou genocídio, alertou a comunidade internacional, o que levou a que o Chade, apoiado pela União Africana, tenha patrocinado um encontro entre facções, que levou a um acordo de cessar‑fogo assinado em 8 de Abril de 2004.
Contudo, nesta mesma data, um grupo dissidente do Movimento para a Igualdade e Justiça, associado à etnia Masalite, fundou o Movimento Nacio­nal para a Reforma e Desenvolvimento, subtraindo‑se assim aos termos do acordo de cessar‑fogo. Isto significa que continuavam a existir “motivos” para a repressão e para a guerra, que tem sido um facto.
Apesar de se ter deixado de falar dos movimentos dissidentes, fora do con­tex­to das negociações de paz, que continuam sem resultados visíveis no ex­te­rior, a violência continua, agora da respon­sa­bi­lidade quase exclusiva das milicias árabes.
O preâmbulo do Acordo de Cessar‑Fogo acima referido, tem considerações interessantes, em especial porque contempla a necessidade de se estabelecer uma cultura polí­ti­ca democrática para garantir os direitos dos cidadãos, e su­blin­ha igual­mente a necessidade de se previlegiar a negociação entre todas as partes interessadas, como via prioritária para resolver os problemas de va­ri­a­da natu­re­za em Darfur.
Para além do elenco das disposições clássicas dos textos de acordos deste ti­po, relativas às garantias e à organização das forças, preconiza o estabele­ci­men­to de um mecanismo para uma solução políti­ca, tão cedo quanto pos­sível – estabelece portanto que as partes se deveriam reunir num prazo muito curto (não mais tarde que duas semanas!) para orga­ni­za­ção de uma Confe­­rên­cia que resolvesse de forma definitiva to­das as di­ver­gên­cias e todos os pro­ble­mas principais, no topo dos quais se encontra­va a questão humanitá­ria, para além do problema político de fundo.
Imediatamente após a assinatura do cessar‑fogo a União Africana, assim co­mo a União Europeia e os Estados Unidos da América, criaram uma comis­são de fiscalização do cessar‑fogo.
Mas logo no mesmo mês as milícias Janjaweed entraram no Chade e provo­ca­ram a morte de cerca de setenta civis; num encontro com as forças go­ver­na­men­tais chadianas, no exercício legítimo de soberania do seu Estado, mor­re­ram on­­ze militares das Forças Armadas do Chade.
Em 30 de Julho de 2004, o Conselho de Segurança das Nações Unidas emite a Resolução 1556, que é a expressão mais clara da impotência da comunida­de internacional na resolução deste conflito. Vale a pena recordá‑la.
Começa por apreciar as diligências tomadas pela União Africana e o seu em­penho em resolver esta crise, e ao mesmo tempo reforça o princípio da sobe­ra­nia inalienável do Sudão e da sua integridade territorial.
Saúda a criação do mecanismo de implementação conjunta estabelecido en­tre o Governo do Sudão e as Nações Unidas, manifesta preocupação com a vi­o­la­­ção constante dos direitos humanos e as condições degradantes em que vi­­­vem os deslocados e aqueles que são alvo permanente das maiores atroci­dades.
Condena a violência e os actos de atrocidade praticados pe­las Janjaweed de for­ma recorrente, e lembra ao Governo do Sudão a sua responsabilidade ine­ren­te quanto à manutenção da lei e da ordem, quanto à protecção das suas po­pu­lações, sem discriminação, quanto ao respeito da lei humanitária inter­na­ci­onal. Ao mesmo tempo, aplaude o comprometimento do Governo em in­ves­ti­gar as atrocidades e julgar os responsáveis (contudo, este comprome­ti­men­to nunca viria a ter qualquer expressão prática, na realidade, como ire­mos ver adiante).
Sublinha a necessidade do Sudão se comprometer em mobilizar as Forças Ar­­ma­­das para desarmar as milícias, e expressa a preocupação sobre as viola­ções constantes do cessar‑fogo, reiterando a afirmação de que todas as partes deverão cumprir com o que ficara acordado em Abril passado (ou seja, me­nos de três meses antes).
Apela à garantia de segurança para o retorno voluntário dos deslocados aos seus lares, e regista o acordo assinado entre o Chade e o Sudão relativo ao esta­belecimento de um mecanismo para o controlo e segurança das frontei­ras entre os dois países.
Considera que a situação no Sudão constitui uma ameaça para a paz, para a estabilidade e segurança naquela região do Mundo.
Face a estes considerandos, o Conselho de Segurança:
– chama o Sudão à ordem para cumprir todas as suas obrigações, imediata­men­te, e para diligenciar no sentido da continuidade das conversações políti­cas relativas ao Darfur, especificamente com o JEM e o SLM/A;
– apoia o envio de monitores, incluindo a força de protecção prometida pela União Africana;
– regista as contribuições da União Europeia e dos Estados Unidos no apoio às operações a conduzir pela União Africana, especialmente em termos lo­gís­ti­cos e de apoio humanitário;
– insta as partes a concluirem um acordo político e a cessarem todas as hosti­li­dades;
– exige que o Governo do Sudão desarme as milícias e leve os respon­sáveis a julgamento;
– chama a atenção de todos os Estados pertencentes às Nações Unidas para não apoi­arem com armas, munições e meios logís­ti­cos as forças ilegítimas no ter­reno;
– reserva‑se para acções de maior gravidade, em caso de incumprimento da presente resolução, e determina que o Secretário Geral apresente um relató­rio mensal sobre a evolução da situação no terreno.
Não se pode afirmar que esta resolução tenha tido um grande sucesso, por­que a situação não evoluiu num sentido positivo nítido. Nenhum dos votos piedosos se concretizou, nenhuma das determinações foi cumprida, e a situação no terreno tem vindo a agravar‑se progressivamente.
É de referir que a Liga Árabe manifestou de imediato alguma reserva, em particular quanto á urgência imposta na resolução, e temendo que a interfe­­rên­cia internacional pudesse vir a criar no Sudão uma situação de ocupação mui­to semelhante à do Iraque.
A gravidade da situação, tal como expressa na Resolução, foi desvaloriza­da pelo governo do Sudão que a classificou como escaramuças entre grupos ri­vais, numa competição natural face à escassez de recursos, um problema de ordem interna sem consequências dramáticas, ao mesmo tempo que avisava o Reino Unido e os Estados Unidos para não interferirem nos as­sun­­tos inter­nos do seu país, e que rejeitava qualquer ajuda militar, não dei­xan­do no entanto de pedir apoio logístico e humanitário.
A posição governamental quanto a esta resolução, parece estar nitidamente expressa na declaração proferida pelo seu pre­sidente, logo a seguir à divul­gação: “... a preocupação interna­cional relativamente a Darfur constitui, de facto, uma preocupação contra (tem como alvo) o Estado Islâmico do Su-
dão…”.
Em Agosto de 2004 chegam a Darfur 150 militares ruandeses e 150 militares nigerianos, com o mandato de proteger os monitores. Não existia força nem mandato que permitisse a interposição entre as milícias e os civis.
As conversações na sequência do acordo de cessar‑fogo e de acordo com a Resolução foram interrompidas e depois retomadas, com acusações mútuas de incumprimento. A hostilidade manteve‑se a um nível elevado. Morriam cerca de dez mil pessoas por mês, de doença, de subnutrição e de actos vio­len­tos. Na comunidade internacional discutia‑se se se deveria classificar a situação como genocídio, o que teria implicações legais ou de legitimidade de intervenção específicas. O debate foi mais ou menos inconsequente aca­ban­do por se concluir, formalmente, pela inexistência de situações desse tipo.
O Conselho de Segurança emitiu uma nova Resolução, com o número 1564, em 18 de Setembro de 2004, cujo teor é o que a seguir se descreve muito sin­te­ti­camente.
Os considerandos são muito idênticos aos da resolução anterior, no seu cariz voluntarista típico. Quanto às medidas, nota‑se igualmente uma repe­tição, com uma linguagem ligeiramente diferente.
Declara a grave preocupação quanto à situação e ao não cumprimento total das obrigações do Governo do Sudão quanto a segurança e bem‑estar da po­pu­la­ção do Darfur.
Deplora as violações ao cessar‑fogo por todas as partes intervenientes, fazen­do referência a um ataque com helicópteros e milícias a três povoações.
Saúda e aprecia a intenção da União Africana quanto à extensão da Missão de fiscalização, assim como quanto aos esforços por ela desenvolvidos no sen­ti­do da conclusão pacífica do conflito.
Por um lado saúda o governo do Sudão pelo pedido que efectuou à União Africana no sentido de aumentar a presença dos inspectores no Darfur, e por outro insta o mesmo governo a tomar os passos necessários para assegurar um ambiente seguro e estável, designadamente para acabar com
o clima de impunidade das milícias, para facilitar o retorno voluntário e em segurança das populações deslocadas, para colaborar com a União Africana na identi­fi­ca­ção dos membros mais importantes das milícias e sua entregaos tribu­nais, para interromper os voos militares no espaço aéreo do Darfur.
Pede ao Secretário Geral que estabeleça rapidamente uma comissão interna­ci­o­nal de inquérito às violações da lei humanitária, dos direitos humanos, e para investigar se existe ou existiu genocídio.
Declara que se o governo do Sudão falhar na implementação das medidas constantes das duas resoluções, considerará medidas adicionais, tais como acções que afectem o sector dos petróleos.
Exige que o governo do Sudão ou membros individuais, dêem cumpri­mento às disposições impostas, por forma a tomarem as acções eficazes para obter o cumpri­men­to total das obrigações previstas e a total cooperação com as entidades internacionais.
Na sequência desta resolução a União Africana comprometeu‑se a elevar o número de forças para quatro mil e quinhentos militares.
Durante todo o ano de 2004 a situação não sofre evolução visível. Repete‑se o comportamento dos actores – num dia parece que existe acordo e que se ca­­minha para a paz, e no dia seguinte verificam‑se violações ao que fora acor­dado na vés­pera.
O objectivo da comunidade internacional é, por um lado fazer baixar a vio­lên­cia, por outro garantir o apoio humanitário, se possível sem muito envol­vi­men­to com meios e forças.
No terreno o processo continua a ser controlado pela União Africana, com o apoio financeiro das Nações Unidas e da União Europeia para sustentar os cerca de 3 100 inspectores.
O mandato atribuido às forças militares africanas é ambíguo, assim como não estão dotadas de meios que possam garantir uma cobertura mínima do território, e muito menos controlar as milícias.
Em cada reunião entre as partes estabelece‑se sempre uma data futura para a resolução de longo prazo do conflito; entretanto acorda‑se sobre as zonas de não sobrevoo ou sobre o acesso das agências humanitárias com os meios de subsistência, restando sempre a dúvida se aquilo sobre que se acorda é ou não para cumprir.
É este o panorama que a Comissão Internacional de Inquérito descreve em Janeiro de 2005, para além da conclusão que não houve nem existiu uma situação de genocídio, e da identificação de cerca de 50 violadores dos direi­tos humanos.
O impasse que entretanto se instalou sobre a sede de julgamento dos crimi­no­­sos, designadamente a questão controversa na comunidade interna­cional acerca do Tribunal Penal Internacional, prejudicou outras acções de pa­ci­fi­cação do Conselho de Segurança, até à aprovação da Resolução 1591 de 29 de Março 2005 que contém como novidade a constituição de uma Comis­são no Conselho de Segurança e de um grupo de especialistas, baseados em Adis Abeba com visitas previstas ao terreno do conflito. Esta estrutura teria como finalidade designar os sujei­tos e as entidades acusados de fomentar o con­fli­to e violar os direitos bási­cos dos cidadãos no Darfur, sujeitos e entidades que deveriam ficar submetidos a medidas de pe­na­lização, incluindo o conge­la­mento de bens económicos e financeiros em todos os Estados Mem­bros das Nações Unidas. Em traços gerais, esta resolução pretendia esta­be­le­cer um embargo de armas, o congelamento de bens das pessoas a título in­dividual ou como representantes institucionais relacionadas com os crimes de guerra, e a proibição de circulação no Darfur daqueles que tivessem sido considerados responsáveis pelas atrocidades.
No final do texto coloca‑se de novo uma ameaça mais penalizante se todas as partes em presença não mostrarem sinais de vontade de resolver este con­fli­to violento.
A Resolução 1593 do Conselho de Segurança que é emitida no dia seguinte, a 30 de Março, define os princípios básicos para o julgamento de criminosos envolvidos no conflito no Darfur, no Tribunal Penal Interna-
cional.
A Comissão de Especialistas identificou cerca de 50 suspeitos de crimes de guerra, como já foi referido. A divulgação deste facto teve como reacção por parte do Governo do Sudão a declaração de que não entregaria qualquer sus­pei­to indicado por aquela Co­mis­são.
A partir de Maio de 2005 verifica‑se uma inflexão da política dos Estados U­ni­dos relativamente ao Sudão, traduzida por uma aproximação entre os ser­vi­ços de informações dos dois países, no âmbito da guerra contra o terroris­mo. Isto traduziu‑se numa certa desvalorização do conflito da parte america­na e o reforço do abandono da tese do genocídio, notando‑se actualmente um maior empenho face à divulgação quase diária de atrocidades.
O Comandante da Força de Paz da União Africana refere em relatório de Jul­ho de 2005 que a segurança teve uma melhoria notável; não se registaram confrontos violentos entre facções e os ataques às aldeias baixaram – por es­sa altura os efectivos africanos eram da ordem dos três mil.
Na sequência da aprovação de uma nova Constituição, saudada pela comuni­da­de internacional, onde se prevê uma representação política de maior equi­da­de, o chefe do Movimento de Libertação do Povo do Sudão, John Garang, (do Sul do Sudão) é empossado como vice‑presidente do Su­dão, na sequên­cia dos acordos com o Sul (fora portanto do contexto de Darfur, mas com influência no desenrolar das acções neste território). Infelizmente, um mês depois da tomada de posse, este influente ex‑chefe carismático da resistência, morre num acidente de helicó­ptero.
Este acontecimento teve um efeito psicológico negativo em Darfur, apesar de não dizer respeito directamente a esta região, e a violência aumenta.
Depois de um ataque das milícias Janjaweed a uma aldeia de refugiados, a União Africana acusou o governo sudanês e os rebeldes de violarem o acor­do de cessar‑fogo. Em sequência, os rebeldes raptaram dezoito membros da União Africana. As Nações Unidas face ao agravamento da situação dão ordem à grande maioria do seu pessoal para abandonarem Darfur. Darfur Ocidental foi considerado muito perigoso para que as agência humanitárias aí continuassem a operar.
A situação voltou a ficar mais tensa desde os finais do Verão de 2005, com confrontações entre actores diversos: as milícias Janjaweed que flagelam as populações de etnia africana, os grupos dissidentes que se opõem ao governo e a tudo que represente o poder, os grupos étnicos entre si, os rebeldes e as milícias contra as forças de paz.
As Forças da União Africana que actualmente são compostas por sete mil efectivos, terminaram o seu mandato no mês de Março de 2006. Foi reconhe­ci­do pela comunidade internacional que esta força está mal equipada e carece de apoio logístico, que tem sido fornecido, essencialmente pela União Europeia. Face a esta situação iniciou‑se uma discussão nas Nações Unidas no sentido de substituir ou complementar as Forças da União Africa­na, tendo sido estendido o prazo do seu mandato para 30 de Setembro deste ano, com a finalidade das Nações Unidas, em conjunto com a OTAN e a UE, prepararem o reforço ou substitui­ção por forças mais bem equipadas e mel­hor treinadas.
A decisão neste sentido está tomada pela ONU, restando no entanto a obten­ção da concordância do Governo do Sudão, que se tem multiplicado em declarações, ao mais alto nível político, contra qualquer acção nesse sentido. Para além duma questão de fundo, que é a percepção pelas autoridades su­dane­sas de ingerência dos paí­ses ocidentais nos assuntos internos do Su­dão, posição que é também veiculada pela Liga Árabe, fazendo a associação à invasão do Iraque, o Go­ver­no do Sudão condiciona a sua con­cor­dância ao es­ta­belecimento de um acor­do de paz consolidado com os re­bel­des, para o qual decorrem negocia­ções na Nigéria desde longa data.
Ao Sudão não interes­sará que os rebeldes sejam consi­derados actores, peran­te a comunidade internacional, o que não acontecerá se estiverem devida­men­te integrados.
Os ataques das milícias a cidades situadas já no interior do Chade levou a um crescendo de tensão na fronteira, ao ponto deste país declarar a sua hos­tili­dade ao Sudão, apelando à mobilização das populações contra o inimigo comum, procurando deste modo um reforço da sua coesão interna.
Na práti­ca é uma declaração de guerra que não tem no entanto uma tradução real, no terreno, por impotência do Chade e por ausência aparente de capaci­da­de de controlo das milícias Janjaweed por parte do Sudão.
Durante o primeiro trimestre deste ano as acções das milícias intensificaram‑se, estendendo‑se as incursões com carácter quase regular no território do Chade, ao ponto do apoio humanitário estar em causa por razões de seguran­ça, e das Nações Unidas terem retirado os seus funcionários, de se falar com insistência em genocídio e de se comparar a situação com a do Ruanda em 1994.
Ao mesmo tempo que as hostilidades se agravam no terreno as partes no con­­fli­­to continuam reunidas em Abuja, para concluirem um novo acordo de cessar‑fogo.
O governo do Sudão tem vindo a afirmar a sua intenção de reforçar a região com forças governamentais, do seu Exército e do contingente dos ex‑rebel­des do Sul, agora integrados, prevendo atingir cerca de dez mil efectivos.
Conforme se vem dizendo sucessivamente nas resoluções das Nações Uni­das, a situação no Darfur continua sendo um foco de instabilidade e uma ameaça à paz naquela região do Mundo.
Mas a declaração verbal não tem correspondência a mecanismos reais de con­­tro­lo da situação, em caso de incumprimento do que se declara como desejável. A ameaça de coacção, ou de penalização, não tem tido, assim, credibi­li­dade, e portanto não tem sido minimamente eficaz.
O conflito Norte/Sul
Apresentados desta forma os traços gerais do conflito no Darfur, vejamos o seu en­qua­dramento no âmbito do país onde se situa.
O Sudão tem uma dimensão cerca de cinco vezes a da região de Darfur e faz fronteira com o Egi­pto, a Eritreia, a Etiópia, o Quénia, o Uganda, a Repúbli­ca Centro‑Africana, a República Democrática do Congo, o Chade e a Líbia.
O território do Sudão actual era no período antigo ocupado por vários reinos que sofreram a influência do Império Egípcio do tempo dos faraós, sem esta­rem anexados politicamente a esse Império. Alguns destes reinos tornaram‑se posteri­or­mente cristãos.
A civilização do Norte que se chamava Núbia é a civilização egípcia, onde exis­tem, ainda hoje, conjuntos de pirâmides semelhantes às que existem no Egipto, embora com outra dimensão.
A meados da centúria de seiscentos da era cristã sofreram a invasão árabe a partir do Egipto, no processo de expansão do Islamismo, que não foi isenta de resistência e de conflito violento. Este conflito haveria de terminar uns anos depois, na sequência de um Tratado entre Árabes e reinos do Norte do Sudão, que durou cerca de sete séculos.
No sul, a partir do mesmo período alguns documentos dão conta da existên­cia de tribos semi‑nómadas, havendo notícia da deslocação de uma delas pa­ra Norte, já no século dezasseis, que aí fundou um reino e se conver­teu ao Islão.
A economia era de tipo feudal, baseada na escravatura que sustentava a clas­se dominante dos mercadores árabes.
Nos anos de 1820/1 verificou‑se a ocupação da parte setentrional do actual Sudão por forças egipcio‑otomanas, no quadro expansivo do Império Oto­ma­no.
Apesar da reivindicação do Egipto quanto ao controlo político na totali­dade do território, inclusivamente com a constituição duma província no sul, chamada Equatoria, a ver­­da­­de é que a autoridade otomana não conse­guiu vencer a resistência dos povos do Sul, que continuaram a viver segundo uma organização política fragmentada, na base da tribo.
O sul do Sudão sofreu várias invasões de povos vindos da África Oriental (especialmente dos territórios hoje pertencentes ao Quénia, à Tanzânia, ao Uganda, e provavelmente ao Burundi e ao Ruanda); as primeiras destas ondas terão ocorrido ainda antes do século X.
Alguns destes povos mantiveram a integridade tribal, outros foram absor­vi­dos, outros ter‑se‑ão extinguido como unidade política ou cultural.
No século XVI um povo guerreiro oriundo da África Central ocupa grande parte do sul e procura a integração de grande parte dos povos residentes.
O que importa realçar aqui é que a integração entre o norte e o sul nunca teve lugar em termos duradouros, e toda esta vasta área que hoje constitui o Sudão foi palco de lutas permanentes, em especial no sul e na relação entre sul e norte.
As barreiras geográficas foram sempre um obstáculo aos avanços do norte para sul. A provar esta dificuldade está o mandato atribuido ao explorador britânico Sir Samuel Baker como governador da província Equatoria, que era o de anexar toda a bacia do Nilo Branco e de suprimir o comércio de escravos, o que não foi minimamente realizado. A Baker sucedeu o General Charles Gordon que conseguiu atenuar este comércio, pelo desarmamento dos comerciantes, e que se tornou Gover­na­dor Geral do Sudão, acabando por ser morto em Cartum às mãos dos re­bel­des comandados por Mahatma Mahdi, como veremos de seguida.
Por volta de 1880 forma‑se no Sudão um movimento de base religiosa, com o objectivo concreto de purificar o Islão e de expulsar o turco e o inglês. Este movi­mento é inicialmente dirigido por uma figura mítica, Muhammad Ahmad, autoproclamado como Mahdi (o purificador do Islão), que atribui o planea­mento de todo este movimento a um outro elemento de grande prestí­gio, um “baqqara” de Darfur, que arregimentou as tribos do reino de Ansar, e declarou a guerra santa contra o regime turco.
Este ataque foi precedido da organização de um santuário na província de Kundufur onde, a coberto duma posição inexpugnável, se lançou uma cam­pan­ha psicológica de aderência à nova corrente religiosa ou mística, se lan-
ça­ram impostos e se concentraram forças para um ataque generalizado às for­ças de ocupação. Várias unidades militares do regime foram atacadas e assaltadas, conseguindo os rebeldes, por essa forma, dotar‑se de um elevado número de armas e munições. A ocupação militar foi quase completa, e os reforços ingleses chegaram tarde – Cartum tinha sido tomada e o General Gordon tinha sido assassinado.
O regime Mahdista (era assim que se chamava o movimento religioso insur­rec­to) impôs a lei islâmica em todo o Sudão e procurou obter a integração política a nível nacional. Seguiu‑se um período de grande convulsão interna, resul­tante da guerra santa que não permitia neutrais, e também de agressão externa, tanto contra o Egipto, como contra a Etiópia, como contra a Eritreia.
Esta situação de guerra envolveu também forças europeias que na altura pro­curavam influências na região, de forma competitiva, designadamente os in­gleses, italianos, france­ses e belgas, e que se interpuse­ram em muitos des­tes confrontos.
Em 1895 foi lançada a partir do Egipto uma importante força expedicionária egipcio‑britânica com o objectivo de reconquistar o Sudão. Esta campanha durou alguns anos até à extinção do regime mahdista.
Em termos políticos, o país ficou na dependência do Egipto mas a unidade de organização retornou à tribo, ou às regiões anteriores, que também havi­am sido fragmentadas na guer­ra psicológica, ou religiosa, que tivera lugar neste período de dezanove anos (1880‑1899).
O Sudão passou a ser um condomínio anglo‑egípcio, a partir desta data. O colonialismo europeu intensificou‑se nesta área estratégi­ca até à indepen­dên­cia em 1956.
Entre as potências europeias desenvolveram‑se algumas crises relativas à pos­se de territórios no Sudão. As mais significativas tiveram lugar entre a Belgica, que pretendia alargar o seu território do Congo Belga com a apro­pria­ção da região de Lado, e a Grã‑Bretanha, e entre esta potência e a França que ficou designada como questão Fashoda de 1898, que é hoje paradigma no estudo da crise, a nível académico. Estes problemas foram resolvi­dos a favor dos ingleses, que passaram a dominar de forma inequívoca todo o Su­dão.
De facto, e como já se referiu, a Inglaterra e o Egipto passaram a administrar o Sudão sob a forma de condomínio, o que significa responsabilidades admi­nis­tra­ti­vas e políticas partilhadas. Mas as admistrações estavam divididas, is­to é, existia o Sudão do Norte e o do Sul, perfeitamente separados, ao ponto de ser necessário passaporte para um cidadão do Norte viajar para o Sul e vice‑versa. Entretanto Darfur, como vimos, vinha mantendo a sua autono­mia.
Inclusivamente as línguas eram diferentes: no Sul a língua oficial era o in­glês, falando‑se um conjunto de dialectos, no Norte a língua oficial era o árabe.
No Sul, ao contrário do que acontecia no Norte, o Islão tinha muito fraca im­plan­tação.
Até 1920, os ingleses tinham pouca autoridade no Sul, que estava fundamen­tal­mente entregue ao sistema tribal, tradicional. As autoridades inglesas de­ram muito mais atenção ao Norte, que sofreu um grande desenvolvimento económico no período, ao contrário do que aconteceu no Sul.
Darfur constituiu neste contexto um processo peculiar: era uma província formalmente sob controlo egípcio que não foi considerada no Acordo de Condomínio. Com a desintegração mahdista já referida, o sultão do antigo rei­no Darfur reclamou o trono que tinha perdido para o Egipto em 1874 e ficou sob suserania otomana, o que foi aceite pela Grã‑Bretanha. Esta lealda­de viria a implicar uma concordância com a declaração de guerra dos turcos aos alia­dos, na Grande Guerra, como já vimos.
Entretanto, no contexto da guerra mundial, o Reino Unido declarou o Egipto como seu protectorado em 1914, e anexou o Darfur ao Sudão, acabando as­sim com o sultanato autónomo.
Em 1922 a Inglaterra aprovou a independência do Egipto, renunciando ao pro­tec­to­rado.
Contudo, a Constituição do Egipto de 1923 não mencionava a soberania so­bre o território sudanês. Esta situação, provavelmente assumida pelos nacio­na­listas egípcios como resultado da percepção de que ela teria sido devida à pres­são inglesa, deu origem a perturbações sociais ou políticas, levadas a ca­bo por descontentes, tendo o Go­ver­nador Geral Sudanês (que era obviamen­te inglês) sido assassinado nu­ma das suas deslocações ao Cairo.
Este evento viria a produzir uma forte reacção inglesa, que se traduziu na ex­pul­são de todas as tropas e funcionários egípcios do Sudão, e na constituição de um aparelho político, adminstrativo e militar baseado em elementos da po­tên­cia colonial e elementos locais sudaneses.
O Sudão viveu em paz interna durante toda a década de 1920, tendo‑se verificado um grande desenvolvimento no Norte, onde existiam melhores condições; o Sul manteve‑se mais ou menos ignorado e não foi objecto de sur­to idêntico, tendo no entanto sofrido influência dos missionários cristãos de Itália, do Reino Unido e dos Estados Unidos da América, em continui­dade do que vinha acontecendo desde longa data.
Os povos do Sul eram considerados diferentes dos do Norte, e por isso a po­tên­cia colonial tinha a intenção de processar a sua integração com os seus outros domínios da África Oriental, e não com o Norte, árabe.
O nacionalismo sudanês que emergiu após o fim da Primeira Guerra Mun­di­al foi um fenómeno essencialmente árabe e islâmico, ficando os povos do Sul, na sua generalidade, relativamente à margem deste processo. Os pon­tos básicos destas movimentações nacionalistas eram a centralização política com capital em Cartum, aplicável ao Norte e ao Sul, como um único país, e a luta contra aquilo que parecia ser a política britânica, de separar o Norte do Sul, isto é, de evitar a unificação sob a liderança árabe e islâ-
mi­ca.
De facto, as autoridades britânicas tinham começado a preparar, ainda em 1943, o processo da independência política para o Norte do Sudão englo­ban­do seis províncias.
O processo não foi ausente de convulsão interna entre as forças políticas lo­cais e o regime, e mesmo entre aquelas, verificando‑se várias correntes: uma que defendia a união com o Egipto, outra que preconizava a indepen­dên­­cia política total; uma que defendia a concentração de poderes outra que era pe­la descentralização com ampla autonomia política.
Em 1947 os britânicos alteram a sua política e decidem‑se pela integração, o que suscitou a revolta do Sul, que entretanto foi apaziguado pela forte pre­sen­ça árabe.
Em 1953 é assinado um acordo entre o Egipto e a Inglaterra que preconiza a extinção formal do condomínio e a autodeterminação do Sudão. Do anterior, os ingleses tinham contribuido para a formação de dois partidos políticos, a partir das forças políticas locais ou tribais, um de influência mais islamita, outro de carácter mais liberal ou laico.
Em 1954 constitui‑se o Parlamento na sequência de eleições gerais e no dia 1 de Janeiro de 1956 é proclamada a independência. Apesar do partido unio­nis­ta ter ganho as eleições, a linha política adoptada foi a de uma indepen­dên­cia total em relação ao Egipto, o que deu lugar a alguma fricção entre os dois países, na altura.
As promessas de federalismo do novo governo não foram cumpridas, o que deu origem a uma revolta do Sul que conduziu a uma guerra civil que have­ria de durar cerca de dezassete anos, ou seja, até 1972.
A guerra civil começa com um motim numa unidade militar, que foi contro­lado, tendo os revoltosos dispersado por várias partes do país, onde foram encontrando apoiantes, fazendo assim alastrar a revolta.
Cerca de dois anos depois de governo democrático, surge um golpe militar relativamente pacífico, como resposta a uma ineficácia do governo em resol­ver os problemas do país. O governo saído deste golpe também não conse­guiu apaziguar os descontentes, e em resultado o país foi palco de greves e tumultos – como resultado deste estado de convulsão, foi tentado o governo civil, tendo‑se realizado eleições gerais em Abril de 1965, a que se seguiram uma série de governos que foram incapazes de resolver os sérios problemas da estagnação económica, e dos separatismos étnicos. O regime não conse­guiu aprovar uma Constituição, regendo‑se por leis avulsas e leis gerais ain­da do tempo do colonialismo.
Entretanto a guerra civil continuava espalhando desordem e caos, sempre com um carácter mais ou menos anárquico. Só em 1971 é que a guerrilha se organiza através do Southern Sudan Liberation Movement (SSLM), com o objectivo declarado de criar o Estado Indepen­dente do Sul do Sudão.
Em 25 de Maio de 1969 dá‑se novo golpe militar que colocou no poder o coronel Nimeiry como Presidente do Conselho de Revolução acumulando com o cargo de Ministro da Defesa, depois com mais o cargo de Primeiro Ministro. Em 1971 Nimeiry fez aprovar uma Constituição que designava o re­gi­me do Sudão como democracia socialista, e tornou‑se Presidente da Re­pú­blica para um mandato de cinco anos.
Em Fevereiro/Março de 1972 é assinado o Acordo de Adis Abeba entre o regime e os dissidentes do Sul, onde é oferecida uma autonomia política para o Sul. A primeira guerra civil terminara, com quinhentos mil mortos, a quase totalidade civis, e com uma situação económica mais degradante.
Nimeiry manifesta‑se inicialmente como socialista e pan‑arabista. Consegue sobreviver a um golpe militar liderado pelos comunistas. Contudo, a partir de 1981 verifica‑se uma viragem brusca na sua política, com a imposição da lei islâmica, ou sharia. Em violação do Acordo de Adis Abeba dissolveu o go­ver­no do Sul, o que fez nascer a segunda guerra civil. Em 1985 dá‑se um golpe militar, Nimeiry é derrotado e exilado no Egipto.
A segunda guerra civil nasce pelas mesmas razões da primeira, agora com mais um factor relevante que era o aparecimento do petróleo, no Sul, que vi­ria a consti­tuir cerca de setenta por cento do valor do total das exportações do Sudão.
As consequências desta guerra também foram bem diferentes: cerca de dois milhões de mortos e de quatro milhões de deslocados, estimando‑se cerca de duzentos mil escravos levados do Sul nas incursões que o Norte aí efectuava.
É interessante notar que ao mesmo tempo que decorria a guerra, essencial­men­te no Sul, aconteciam convulsões políticas ao nível central do regime.
Assim, o regime político saído do golpe que depôs Nimeiry, suspendeu a Cons­tituição de 1983 e revogou o decreto que preconizava uma tendência para um Estado Islâmico. Contudo, as leis específicas que tinham instituido a lei islâmica não foram revogadas.
Em Abril de 1986 decorreram eleições gerais e procedeu‑se à transição para um regime civil. De imediato, o novo governo iniciou negociações de paz com o Sudan People Liberation Army (SPLA) dirigido pelo Coronel John Garang, que deram lugar à declaração de Koka Dam que explicitamente instituia a abolição da lei islâmica e a criação de uma conferência constitu­ci­onal. Esta conferência foi concluindo pela abolição dos pactos militares com o Egipto e a Líbia, pelo congelamento da lei islâmica, pelo fim do estado de emergência.
Todos estes progressos foram posteriormente negados pelo regime, o que le­vou a nova crise política e ao abandono dos partidos laicos do governo.
As For­ças Armadas obrigaram o governo a aceitar aqueles pontos.
Contudo, lo­go a seguir, tem lugar novo golpe que substituiu o governo por uma junta revo­lu­ci­oná­ria apoiada por um governo civil.
Em 1991 é publicado novo código penal baseado na lei islâmica, que numa primeira fase não é aplicado no Sul, só o sendo, pela força, em 1993 – era a continuidade da guerra entre o regi­me central, islâmico, e a dissidência do Sul a lutar pela independência.
O país viveu neste período de guerra uma situação próxima do caos, o que permitiu, por exemplo a constituição de um santuário para a Al Qaeda de Ben Laden entre 1990 e 1996, data em que foi expulsa.
Não foi só a dissidência do Sul que lutou contra o regime; outros grupos se formaram no Norte e Cen­tro, contra Cartum, o que veio agravar ainda mais a situação.
A partir de 1997 começam a esboçar‑se várias iniciativas para se atingir a paz, quer originárias do interior quer no exterior; nesta primeira fase conse­guiu‑se o isolamento do SPLA, que continuou a sua luta violenta, numa segunda fase atingiu‑se um acordo de paz.
Em Julho de 2002 é assinado o Protocolo de Machakos que constitui um acordo geral, fixando os princípios de governação, o processo de transição e as estruturas de governo, assim como o direito à autodeterminação do povo do Sul do Sudão, e a separação entre Estado e Religião.
No final desta reunião os participantes decidiram continuar conversações so­bre questões importantes, que desde logo fixaram, tais como a partilha de poder, de riqueza, a protecção dos direitos humanos e o cessar‑fogo, propria­-
mente dito.
E assim aconteceu, tendo‑se acordado em Protocolos sobre a distribuição da riqueza em Janeiro de 2004, sobre a partilha do poder em 26 de Maio e, finalmente o Acordo de Paz em 9 de Janeiro de 2005.
O Tratado de paz assinado pelas partes envolvidas, em Janeiro de 2005, contempla os seguintes termos:
– obtenção de autonomia política para o Sul durante um período de seis anos, findos os quais se seguirá um referendo votado pelo povo do Sul para a sua secessão;
– fusão das Forças Armadas de ambas as partes, atingindo trinta e nove mil efectivos ao fim dos seis anos;
– divisão proporcional, a cinquenta por cento para cada parte, dos rendimen­tos do petróleo;
– ocupação, segundo uma proporção acordada, dos lugares da Adminis­tra­ção, no período transitório;
– continuação da aplicação da lei islâmica no Norte, enquanto que no Sul tal decisão será tomada livremente pela Assembleia eleita.
Desde aquela data tem‑se assistido a uma certa tranquilidade no Sul do Su­dão, estando a processar‑se a integração das forças armadas, embora de for­ma lenta.
Pela Resolução 1590 de 24 de Março de 2005, do Conselho de Segurança, é estabelecida a Missão das Nações Unidas no Sudão, para apoiar a imple­men­ta­ção do Acordo de Paz assinado entre o Governo do Sudão e o SPLM/A em 9 de Janeiro de 2005, para exercer certas funções relacionadas com a assis­tên­cia humanitária e para a protecção e promoção dos direitos humanos. É constituida uma força de apoio à paz composta por dez mil efectivos milita­res, de comando dum tenente‑general indiano, e setecentos polícias coman-
da­dos por um comissário britânico. A Missão está baseada em Cartum com des­tacamentos no Sul.
Nos princípios de 2006 esta força tinha seis mil e trezentos militares no ter­re­no, fornecidos por sessenta e um países, e mil e setenta polícias provindos de trinta países.
Interessa ainda, para a descrição da situação no Sudão, incluir os aspectos re­la­tivos ao novo factor em presença, que é o do aparecimento do petróleo.
A prospecção teve início na década de sessenta do século passado, na zona do Mar Vermelho, tendo prosseguido para o sul do país; actualmente exis­tem seis blocos atribuidos, com dimensões variáveis, que vão dos vinte mil aos cinquenta mil quilómetros quadrados cada.
A exploração começou em 1999, com carácter regular, usando apenas um oleoduto e uma marina adequada à transferência do crude. A exportação inicial foi da ordem dos cento e vinte mil barris diários, com uma expansão contínua permitindo efectuar uma previsão de quinhentos mil barris diários em 2005 e setecentos e cinquenta mil em 2006.
As reservas actualmente contabilizadas apontam para quinhentos e ses­senta milhões de barris, havendo previsões de mil milhões feitas em 2002, e de cinco mil milhões quando a exploração se estender para Noroeste, para a ba­cia do Nilo Azul e para o Mar Vermelho.
A área de exploração poderá aumentar substancialmente, o que levará a va­lo­res elevados de produção, que segundo os especialistas não se prevê que venham a atingir os valores da Arábia Saudita ou do Irão.
Os maiores importadores de petróleo são a China, o Japão, outros países asi­á­­ti­­cos, fundamentalmente, e as empresas petrolíferas a operar no Sudão são igualmente destes países, em conjunto com algumas outras europeias.
Para além do petróleo existem igualmente reservas de gás natural que se estimam em cem mil milhões de metros cúbicos, e que não estão a ser explo­ra­das, actualmente.
De país miserável, o Sudão passa para o estatuto de país remediado, com um crescimento anual superior a seis por cento, de forma sustentada nos últimos três anos, embora contiue a manter uma dívida externa elevada, e cerca de oitenta por cento da sua força de trabalho se concentre na agricultura. Os indicadores que normalmente significam desenvolvimento económico e social estão ainda a um nível muito baixo; por exemplo a esperança de vida é da ordem dos cinquenta anos, o nível de literacia é da ordem dos sessenta por cento (% da população com idade superior a quinze anos que sabe ler e escrever), o produto per capita é da ordem de dois mil e cem dólares por ano.
O contexto regional
Um do vizinhos do Sul, o Uganda, que tem uma área cerca de metade da de Darfur, com vinte e sete milhões e trezentos mil habitantes, vive desde a sua independência política, em 1962, uma situação de conflitualidade interna bastante elevada, muito embora ela tenha vindo a ser diminuida nos últimos anos.Os resultados deste conflito traduzem‑se em números de mortes e deslocados impressionantes, que terão atingido as cifras mais elevadas durante o período do governo de Idi Amin. O problema inicial foi o da autonomia dos reinos pré‑existentes à independência, que conduziu a um conflito Norte/Sul, em que aqui era o Norte que se sentia discrimi­nado, assim como na expulsão dos asiáticos que se encontravam no país desde o regime colonial.
Ao contrário do que acontece no Sudão, a clivagem étnica é aqui muito me­nos acentuada, apesar da existência de cerca de dezoito grupos étnicos, com uma maioria de 18% de bagandas (o grande reino autónomo do Sul).
A religião dominante é a cristã, ao contrário do que acontece no Sudão, não havendo conflito religioso, apesar dos rebeldes do Norte terem um compor­ta­mento místico, defendendo o governo do país segundo os dez manda­men­tos, numa posição que se poderá talvez dizer como mimética em relação à aplicação da sharia em alguns países, como é o caso do Sudão, na sua região Norte – a prova de que não existe conflito religioso é de que foram as autoridades religiosas cristãs que se ofereceram como mediadores do confli­to actual, não existindo portanto qualquer identificação entre a religião cristã e os rebeldes, mesmo em termos de ideal.
Actualmente existe ainda muito activo o Exército de Resistência do Senhor (LRA), no Norte, que tem provocado as maiores atrocidades, em especial contra a população jovem. Os ataques destes grupos contra as populações tem provocado deslocações apreciáveis, não só dentro do Uganda, mas também para o Sul do Sudão, onde se constituiram também campos de refugiados de ugandeses.
Mas o LRA também constituiu o seu santuário no Sul do Sudão onde espal­ha terror, não só contra os campos de refugiados mas também contra as po­pu­la­ções sudanesas. Durante a guerra civil no Sudão não existem muitas referências relativamente à posição do regime sudanês face a esta situação de atenta­do à integridade territorial. Recentemente, o governo sudanês pela voz do seu vice‑presidente sulista, ameaçou expulsar estes grupos com utilização da força.
Entretanto existem acusações por parte do regime ugandês de que o regime sudanês apoiou, e apoia, estes rebeldes, o que tem originado alguma fricção, e de que no passado as forças sudanesas do regime terão invadido o Uganda na perseguição de populações e grupos armados, trazendo a guerra para dentro deste país.
Devido à guerra civil no Sul do Sudão, cerca de duzentas mil pessoas procu­ra­ram refú­gio no Uganda, onde ainda permaneciam em data recente; é natu­ral que com a paz existente neste momento, algumas destas populações tenham já regres­sa­do ao Sudão.
Apesar desta situação de conflito fronteiriço, que tem períodos altos que al­ter­nam com outros de relativa acalmia, as Forças Armadas do Sudão alinha­ram com as Forças Armadas do Uganda na invasão do Congo, para derrubar Mobutu, no apoio a Kabila. Posterior­mente só o Uganda voltou a entrar na República Democrática do Congo em apoio dos rebeldes que se opunham a Kabila, existindo grupos ugandeses em território congolês, perturbando a exploração mineira na região, e constituindo um problema grave de seguran­ça.
Em todo o caso, a situação nesta região, em particular no Uganda e na Repú­blica Democrática do Congo, é confusa, ainda longe de atingir estabili­da­de, e a instabilidade espraia além fronteiras, com reflexos na vizinhança, inclu­in­do o Sudão.
Um outro país vizinho é a Etiópia, o ex‑Império Etíope ou a velha Abissí­nia, cuja primeira relação diplomática foi com Portugal, o que fez envolver as forças armadas portuguesas nas lutas do Império contra a Somália, no sé­cu­lo XVI, e que se manteve como Império até ao derrube de Halé Selassié em 1974.
País com uma história muito rica, que se converteu ao Cristianismo logo no século IV, para onde o Profeta Maomé aconselhou a fuga de muçulmanos perseguidos em Meca, por “ser governada por um rei cristão piedoso”; onde existiram reina­dos salomónicos, judaicos, a meados do século XIII, e onde se manifestou disputa entre a Igreja de Roma e de Cons­tan­ti­no­pla. Esta con­ver­gência de credos releva da importância que o Império merecia, certamen­te.
Actualmente a religião muçulmana e a religião ortodoxa equiparam‑se em nú­me­ro de crentes, não se conhecendo radicalismos nesta matéria.
A Etiópia é o país africano independente mais antigo, que nunca foi coloni­za­do, à excepção de um período de ocupação italiana de cinco anos no tem­po de Mussolini.
Conseguiu escapar à onda colonizadora europeia dos finais do século XIX e der­ro­tar as forças italianas que tentavam conquistar uma parte do seu terri­tório, assinando um tratado de paz em 1896. O mesmo não aconteceu com a vizinha Eritreia que foi colonizada por Itália, pela mesma data, na sequência da compra de um dos seus portos. Em 1941, com a derrota das forças italia­nas pela coligação anglo‑etíope, a Eritreia passou a ser uma das províncias da Etiópia, até à independência daquela em 1993.
A seguir à queda de Selassié, as novas forças políticas sofreram o apoio e a influência da União Soviética, na luta contra a Somália.
A partir de 1994 a Etiópia adoptou o regime multipartidário e tornou‑se adep­ta do liberalismo económico. Do ponto de vista político existe estabili­dade, apesar da fraca rotação das forças políticas no poder.
Contudo, do ponto de vista económico é um dos países mais pobres de Àfri­ca, com um rendimento per capita da ordem dos cento e dez dólares, depen­den­do quase totalmente da assistência internacional. Em termos de desenvol­vi­men­to, os indicadores são bastante baixos, por exemplo com cer­ca de dois ter­ços da população iletrados, e com a esperança de vida de quarenta e oito anos.
Mantém uma guerra com a Eritreia por questões de limitação de fronteiras; ape­sar de já ter sido assinado um acordo de paz, não existe ainda concor­­dân­cia entre as duas partes quanto à marcação da linha fronteiriça proposta por uma comissão internacional.
As relações com o Sudão são normais, e os reflexos da fome traduzem‑se em deslocação de populações, em busca de alimentos, sem terem em conta as fron­tei­ras, o que causa por vezes situações de tensão. Existe uma questão fronteiriça com o Sudão e o Quénia, por indefinição de limites, na zona de convergência de fron­tei­ras, que é conhecido por triângulo Ilemi, sem contudo ter provocado hostilidade de parte a parte.
A Eritreia é outro dos países que faz fronteira com o Sudão e que interessa referir. Manteve‑se em guerra com a Etiópia durante trinta e um anos, desde o momento da sua integração (anexação) na Etiópia como província em 1962, quebran­do o estatuto de estado federado (autónomo, agregado à Etió­pia) que possuia desde o fim da colonia­li­za­ção em 1952.
A Eritreia, com quatro milhões e duzentos mil habitantes e uma superfície de cerca de um quarto da de Darfur, tem um produto nacional per capita de cerca de setecentos dólares, e uma posição estratégica importante no Mar Vermelho, donde lhe vem uma parte importante do seu rendimento, através da navegação marítima.
A população, maioritariamente de origem afro‑asiática, é dividida prati­ca­men­te em duas etnias principais, a Tigrinya com cerca de dois milhões de pes­soas (quase metade da população) e a Tigre e Kunama com um total idên­ti­co. A primeira, que se espalha também pela Etiópia, embora se consi­de­rem já politicamente distintas, diz‑se descen­dente de Menelik I, filho do Rei Salomão e da Rainha Sheba, e tem uma língua própria, com o seu nome, que é a língua oficial (existe uma Bíblia em tigrinya de edição antiga). A segunda tem uma língua própria que é parcialmente en­­ten­dí­vel pelos Tigri­nya.
O regime actual reconhece quatro grupos religiosos: os Cristãos Orto­doxos, os Católicos, os Muçulmanos e os protestantes. Existe uma forte perseguição às seitas religiosas, por parte das autoridades, que as consideram como ins­tru­mentos de instabilidade social e política, ao serviço de entidades externas.
A Eritreia apoiou os rebeldes do Sul do Sudão durante a guerra civil, e acusava o Sudão de tentar interferir nos seus problemas internos. Depois do cessar‑fo­go no Sudão verificou‑se uma aproximação entre os dois países, que se en­con­tra­vam de relações cortadas, e que se irá traduzir em breve na troca de embaixadores. No caso do reacendimento das lutas entre o norte e o sul será mui­to prová­vel que a Eritreia volte de novo a apoiar o sul, o que poderia cons­­ti­tuir um foco de tensão potencial.
As relações do Sudão com o Egipto e a Líbia foram consideradas pela oposi­ção interna ao regime, não há muito tempo, como de dependência ou sub­mis­são, num prolongamento da situação histórica que se quebrou com a independência em 1956.
Existe um problema de indefinição de fronteira en­tre o Sudão e o Egipto, re­la­ti­va­mente a uma faixa de terreno de cerca de vin­te mil quilómetros quadra­dos na costa do Mar Vermelho, que é reivindi­ca­da por ambos os países.
Na luta travada entre o Norte e o Sul é lógico admitir que os vizinhos do Sul, africanos, apoiem os rebeldes, e que os vizinhos do Norte, árabes, apoiem o re­­gi­­me central.
Conclusões
A descrição parece ser suficiente para dela se extrairem algumas conclusões.
Em área, o Sudão é o maior país africano e o décimo mundial; em população é o trigésimo mundial e o sexto africano.
Quando se trata de desenvolvimento económico e social, o seu lugar na hie­rar­quia dos países está ainda mais abaixo. Contudo, as suas potenciali­dades são enormes, não só as que decorrem da descoberta e exploração de petróleo e gás natural, mas também das reservas aquíferas que poderiam alterar a fisionomia do país, se devidamente exploradas, em especial no sul.
Foi só a partir da sua independência, em 1956, que a inte­gração nacional assumiu a configuração política em que hoje formalmente se encontra. Esta memória histórica de autonomia tem levado à consideração de três áreas diferencia­das: o Norte, o Oeste ou Darfur e o Sul, onde habitam populações étnica e culturalmente diferenciadas.
O poder central tem sido dominado por elites do Norte onde tem havido um maior desenvolvimento, também em termos históricos: tanto os egípcios co­mo os ingleses, potências dominantes em determinados períodos, pararam a meio do actual país, no seu avanço para sul, pelas condições inóspitas que então apresentava, embo­ra reivindicassem o seu domínio sobre todo o terri­tório. O povoamento do Sul é feito a partir de povos que provêm das regiões mais a sul, em datas muito longíquas.
Existe portanto aqui uma clivagem que é originária nas diferenças civilizaci­o­nais ou culturais, e que o tempo e o esforço de integração ainda não resol­ve­ram. A tentativa de domínio de uma parte sobre a outra, que é traduzida por exemplo na ocupação de lugares na Administração Pública com uma relação fraquíssma de sulistas, suscita a consciência de discriminação e a revolta subsequente.
A separação política entre estes povos durante o seu percurso histórico acen­tu­ou a diferenciação quando o processo de integração começou, em especial quando se procuraram impôr leis que iam contra a religião de parte desses povos.
A imposição da lei islâmica resultou sempre numa reacção muito vi­va, por parte daqueles que não professavam essa religião. Houve uma pre­sen­ça cristã no Sul, num dado momento histórico longínquo, o que provavel­mente terá facilitado a missionação dos séculos dezanove e vinte, o que não significa contudo que exista uma grande implantação da fé cristã no Sul – muitos dos povos continuam animistas, e o islamismo também parece pouco implantado.
Em termos globais, no Sudão cerca de 70% da população é muçulmana suni­ta (concentrada no Norte), 25 % é animista e 5 % é cristã. O que parece re­le­vante sublinhar é que são essencialmente as elites do Sul, cristãs em franca maioria, que sempre reagiram à imposição da lei islâmica, e é de esperar que assim continue no futuro.
Curiosamente, aproveitando porventura os ventos da História, são os povos do Sul aqueles que mais reivindicam o estado laico assente na democracia, com separação entre política e religião.
Para além destas diferenças culturais e ideológicas, parece ser importante na génese do conflito a disputa da terra e dos recursos.
Segundo relatos de obser­va­do­res, quando as milícias Janjaweed lançam os seus ataques a cava­lo, deixando destruição e morte à sua passagem, fazem‑no com gritos de insulto e ordens de expulsão das gentes locais de cor mais negra, clamando que a terra não lhes pertence.
As guerras civis que assolaram o território na maior parte da sua indepen­dên­cia resultaram de motivações idênticas, de revolta contra o regime domi­na­do pelo Norte, pela tentativa deste em impôr a lei islâmica ao sul.
As clivagens de várias naturezas não foram ainda entendidas pelas elites, no sentido da necessidade da sua gestão, na superação de divergências ena convivência políti­ca entre povos diferentes na cultura, na religião e na étnia.
Pelo contrário, as diferenças têm vindo a acentuar‑se, e se às vezes se julga que se caminha para o entendimento, no discurso verbal, tal não é mais que uma aparência, porque a razão dessa aproximação é a relação de poder, não só no plano interno como ao nível da comunidade internacional.
O conflito Norte/Sul que está suspenso por um acordo de paz, que prevê a independência do Sul se as populações assim o entenderem, e a distribuição equi­ta­tiva dos proventos do petróleo, pode reacender‑se a qualquer mo­­men­to, quando as tropas das Nações Unidas abandonarem o território, ou mesmo an­tes.
O seu reacendimento estará dependente da percepção que se fôr crian­do nos re­vol­to­sos quanto à relação de forças e do surgimento de um líder que arre­gi­mente vontades e mantenha as organizações de guerrilha em funci­o­­-
na­mento.
A desconfiança continua a existir, segundo declarações de dirigentes sulistas com responsabilidades a nível nacional. O aniversário do tratado de paz só foi comemorado no Sul, tendo sido ostensivamente ignorado no Norte. A receita do petróleo ainda não foi distribuida no Sul, assim como existem queixas de distribuição desigual da ajuda internacional.
Por outro lado, algumas personalidades do Norte entendem que o tratado de paz foi negociado sobre pressão, não compreendendo porque é que, face à proclamada autonomia do Sul, ainda existam imposições para que a Admi­nis­tração Central seja ocupada por quadros também do Sul. Declarações deste tipo denotam um estado de espírito que não será conforme com a declaração oficial, a que está vertida nos documentos.
Entretanto, o petróleo está no Sul mas os contratos de exploração são geridos pelo Norte, assim como as respectivas verbas provenientes destes contratos, na perspectiva de muita gente no Sul.
Os antigos guerrilheiros estão sendo integrados, lentamente, nas forças ar­ma­das nacionais, mas o processo pode ainda regredir, se não existir um es­forço de integração a outros níveis, designadamente o reconhecimento das diferentes etnias e grupos pelo regime, e a convivência, de facto, entre estes povos diferentes. Esta é a questão fundamental que a não ser resolvida, de for­ma realista, poderá fazer reacender o conflito.
Por outro lado, as questões económicas não estão a ser resolvidas, na pers­pecti­va do Sul, que entende que se vive pior do que se vivia durante a guer­ra.
Naturalmente que será necessário tempo para ultrapassar as questões que no passado conduziram à guerra, mas os que se sentiram discriminados só ultra­pas­sa­rão a situação quando observarem medidas claramente indicadoras dum esforço de integração, de reconhecimento, de direito à cidadania, e isso, segundo vão dizendo os do Sul, não está a acontecer.
A comunidade internacional deixou de se preocupar com esta situação, a par­­tir do momento em que foi assinado o tratado de paz, para além da manu­ten­ção da força de apoio à paz. Hoje só se fala na questão do Darfur. Aparentemente, esta atitude resulta do pres­su­posto que o problema ficou resolvido, em definitivo, com aquele acto for­mal, o que poderá não ser o caso. A situação na região Sul pode no entan­to fazer anular este esforço, se se generalisar na população um sentimento de in­jus­tiça, e se ressurgir de novo a capacidade de mobilização e liderança que permitam reactivar uma organi­zação para repôr uma situação de equidade e justiça, do ponto de vista dos eventuais dissidentes.
A existência de petróleo e gás natural podem vir a constituir elementos de desestabilização, se entretanto se gerar a percepção de que são extraídos no Sul, transportados para o Norte e que só uma parte da população beneficia com isso. Contudo, a existência de interesses externos nesta exploração, atra­vés de grandes empresas internacionais e dos países importadores, em es­pe­cial os asiáticos, pode constituir um elemento de contenção do potencial conflito.
Por todas estas questões potenciais, a paz é precária no Sul. Não se poderá es­pe­rar que uma memória de conflitualidade se apague, definitivamente, com a assinatura de um documento.
Será necessário ainda um longo período de convivência para se assumirem as potenciais diferenças e clivagens e se resolverem de forma positiva, erradi­can­do a desconfiança entre povos diferentes que pretendam constituir uma sociedade política una.
Entretanto decorre um grande esforço de reconstrução do Sul, em particular no campo da educação e dos cuidados básicos, pela comunidade internaci­onal, conforme é largamente publicitado. Contudo, este esforço não será su­fi­ciente, só por si, para se garantir a paz.
A grande dúvida reside no que irá acontecer, ou no que estiver a ser prepara­do relativamente ao referendo sobre a independência, assim como quanto à visibilidade da distribuição do rendimento proveniente da exploração do pe­tró­leo, e fun­da­men­tal­mente, na eficácia do governo de coligação em gerir o pro­cesso de in­te­gração. Existem actualmente sinais inquietantes de descon­fi­an­ça, quer ao nível das populações tradicionalmente discriminadas, comao ní­vel da coa­bi­ta­ção política, a avaliar por declarações que surgem na comu­ni­ca­ção so­cial.
No plano externo poderão eventualmente surgir posições divergentes quan­to às questões de fundo, assumidas pelas Nações Unidas na sua visão universa­lista e idealista, pela Liga Árabe, pela União Africana, pelos países vizinhos árabes e africanos. A tentativa de criação de um Estado Islâmico, por exemplo, iria certamente suscitar o retorno à guerra.
A situação no Darfur é diferente, desde logo porque existe violência diária en­tre grupos rivais, e entre uma parte destes e o poder político instalado a uma grande distância, e também porque se trata de um conflito muito mais recente.
O objectivo das milícias árabes é, na prática, a expul­são ou a extinção das po­pu­la­ções negras, e a constituição de uma população mais homogénea, nu­ma nova distribuição da terra. E este objectivo, que não será o do Governo Cen­tral, ajusta‑se, ou não será contrário, aos seus fins de estabilidade e de paz.
Daqui se poderá concluir que a situação do Governo é ambígua, em relação ao comportamen­to das milícias, quando analisada do exterior. O Governo, perante o exterior, refuta as acusações de apoio às milícias, mas os observa­dores no terreno ex­traem correlações que não lhes deixam margens para dú­vidas, ao ponto do Conselho de Segurança interditar o espaço aéreo do Darfur a aviões militares do Sudão, ao mesmo tempo que reitera a integrida­de territorial e a soberania do Sudão.
Neste processo que tem levantado algumas dúvidas quanto à existência de um genocídio, de facto, o tempo é um elemento favorável aos eventuais au­to­res activos, e joga contra aqueles que diariamente são acossados nas suas próprias casas ou povoações.
O antagonismo entre etnias explodiu quando os mais fracos se revoltaram con­­tra o poder político central, que acusaram de exercer discriminação, o­pres­­­são, a caminho de uma ausência total de reconhecimento como seres humanos.
As sucessivas resoluções do Conselho de Segurança pouca eficácia tiveram, para além de exporem o problema à comunidade internacional. A força afri­ca­na de apoio à paz não tem meios para controlar a situação em termos acei­tá­veis, apesar dos recursos logísticos entretanto disponibilizados pela União Europeia e pelos Estados Unidos.
Como consequência desta ineficácia, as Nações Unidas entenderam substi­tuir ou complementar as forças africanas por outras forças, com outra dimen­são e outros meios. Esta decisão não tem sido facilmente aceite pelo Gover­no do Sudão, que em uníssono com a Liga Árabe, consideraria esse facto co­mo uma interferência nos assuntos internos, mesmo como uma invasão, fazendo a analogia com o que sucedeu no Iraque em 2003.
Com a intenção de ganhar tempo, o governo do Sudão tem vindo a admitir a hipótese de aceitação das forças das Nações Unidas, apenas se e quando se es­ta­belecer um acordo de cessar‑fogo com os rebeldes, cujas negociações de­cor­rem desde há muito tempo em Abuja.
Contudo, o Vice‑Presidente do Governo admitiu que as forças das Nações Unidas seriam bem‑vindas, desde que fossem portadoras de um mandato cla­ro. Esta posição não contempla qualquer condicionamento ao suces­so das negociações de paz, o que evidencia a divisão ao nível do Governo Cen­­tral, de coligação Norte/Sul, quanto a este tema.
A questão da força de apoio à paz terá que estar resolvida até finais de Se­tem­bro deste ano, data em que cessa o mandato da força africana, já prolon­ga­do para este efeito da transição.
Tanto no conflito designado por Norte/Sul, como no conflito no Darfur, não existe um alinhamento claro de toda a comunidade internacional. Onde exis­ti­rá aparentemente um maior consenso será no Conselho de Segurança; con­tudo, a existência de interes­ses asiáticos na região, associados ao petróleo pode fazer alterar esta situa­ção, por exemplo.
A Liga Árabe apoia naturalmente o Governo do Sudão, enquanto que a Uni­ão Africana é sensí­vel aos problemas dos rebeldes. Estes dados influen­­­ci­a­rão certamente a reso­lu­ção deste problema, que subsistirá enquan­to existi­rem os recursos suficientes para que a dissidência leve a cabo as suas opera­ções, e as milícias continuarem a dispôr de alvos para contra eles continua­rem os seus ataques.
Por outro lado, também não estará garantido que a Força das Nações Unidas tenha a capacidade suficiente para impôr ou negociar a paz.
Não se nos afigura que o Governo do Sudão venha a estar facilmente dispo­ní­vel para aceitar a autonomia de duas grandes regiões actuais, ou que estas venham a dispôr, a curto prazo, da capacidade de auto‑governo, ou indepen­dên­cia – também parece ser essa a posição das Nações Unidas, pelo menos a que foi expressa nas sucessivas resoluções do Conselho de Segurança onde se defende o princípio da integridade territorial do Sudão.
É neste enquadramento que se tem que entender a posição do Governo do Sudão relativamente às Nações Unidas: não quererão que os seus problemas internos sejam expostos à comunidade internacional, mas não terão a força suficiente para rejeitar os seus apoios; é de admitir uma grande resistência à constituição de uma nova força de apoio à paz, com mais efectivos, provin­dos de países ocidentais, nalguma medida, com muito mais capacidades.
O Governo do Sudão sabe que, sem a sua concordância, não existirão forças estrangeiras no terreno, e é possível que venha a usar todos os mecanismos dilatórios à sua disposição para que o destacamento, decidido unila-
teral­mente pela ONU, não se realize em tempo útil.
Sobre esta questão verificam‑se actualmente duas tendências, veiculadas pela comunicação social: por um lado, a disponibilidade americana para, no quadro das Nações Unidas, se passar à adopção de mecanismos mais fortes de penalização, incluindo a interposição da força no sentido de se evitar o ge­no­cídio, e por outro lado, outras vozes que recomendam ponderação suge­rin­do que o destacamento da força poderá produzir reacções internas impre­vi­sí­veis, e um desgaste não compatível com os objectivos pretendidos, fa­zen­do sempre o paralelismo com o Iraque.
O referendo no Sul dentro de cinco anos vai ser um evento que irá requerer muita preparação, a todos os níveis. Em coerência com as posições assumi­das no passado, que levaram a duas guerras civis de décadas, será de admitir uma resposta pela afirmativa das populações, ou seja, pela independência – e a aceitação deste resultado por todos os actores potencialmente interventores constitui actual­men­te uma dúvida le­gí­ti­ma.
Quanto a Darfur, se a relação entre as forças do regime e as forças dissiden­tes se equilibrarem, isto é, se estas últimas não se enfraquecerem, é de prever que entretanto continuem a reivindicar a autonomia, ou a indepen­dência. O factor mimético, tendo em conta o que se está a passar no Sul, poderá incen­ti­var ou atenuar a conflitualidade, em função dos resultados alcançados.
http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=87
Fonte:

A Nova Ordem Mundial

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