Sempre falamos em "cultura brasileira", mas não sabemos exatamente o que é isso, hoje em dia. Cultura é o quê? Uma senhora grega, de camisola, segurando uma tocha? Cultura é uma índia, negra e portuguesa, de cocar e saiote? Cultura é um museu erudito e paralítico que rima com "sepultura"? Fazemos boquinha elegante para falar em "cultura", mas sempre sobra um gosto de alguma coisa em crise, que deve ser salva.
Na tradição de bacharéis colonizados de cartola e fraque, sempre amamos as "coisas do espírito", "a alma minha gentil"ou o "vai-se a primeira pomba despertada", as poesias com que nos embriagávamos nos botequins da República Velha, em meio à febre amarela e varíola.
A impotência política para superar nosso atraso endêmico nos levou a uma supervalorização da "cultura artística". Era nossa ilusão e consolo: "Somos pobres, mas com uma cultura rica...". Senti isso em minha juventude, quando um companheiro me disse: "Não temos nada, mas somos o "sal da terra"". Fazíamos arte, filmes, música como se salvássemos o País. Agora a web é uma cachoeira de criações artísticas. Acabam os poucos artistas criando para muitos.
Antes, o subdesenvolvimento nos dava uma "superioridade" sobre os "falsos problemas europeus", como o absurdismo do teatro de Beckett ou Ionesco, o "existencialismo alienado do social" ou o sinistro comercialismo americano. A pobreza era nossa maior riqueza. Vivíamos na divisão simplista entre "Centro e Periferia", colônia e metrópole, vítimas santificadas do imperialismo cruel. Nossos defeitos institucionais seculares ficavam ocultos, já que a culpa era "dos outros". Chegamos a fazer a glamourização da incompetência. Era a poética da precariedade contra a técnica dos países ricos e "decadentes". Achávamos a miséria uma nova estética - o mito de que o tosco, o povo simples e até o burro são ungidos por uma "verdade sagrada". Essa ideia reacionária rola até hoje, haja vista o carisma triunfal do ex-presidente operário. Minha geração, no cinema e na esquerda, achava que teria um futuro cultural que a salvaria; havia um "geist" artístico em marcha a uma harmonia libertadora. Éramos os "sujeitos" que moldariam a História. Éramos hegelianos e não sabíamos.
No entanto, as mutações culturais mais visíveis (que não enxergávamos) vieram por "irrupções" de causas materiais, de relações de produção industriais e comerciais: a cultura do café e o Modernismo; o "crash" da Bolsa em 29 contribuindo para nossa "identidade" na Revolução de 30; a indústria fonográfica americana e o rádio projetando a música popular dos anos de ouro; a industrialização juscelinista possibilitando a arquitetura, a bossa nova, o cinema novo; a Phillips e outras gravadoras veiculando a música dos anos 60; a TV ensinando o povo a falar e a ver o País. Não éramos marxistas e não sabíamos.
A cultura patriarcal/estatal desde a Colônia nos garantia durante o populismo janguista até 64, que o Estado faria uma revolução tropical e transcendental (vide os delírios de Darcy Ribeiro, por ex.), de modo a tirar o País da "alienação" e salvar, pela arte, os oprimidos. A cultura era uma política.
O golpe de 64 foi uma porrada na utopia. Mas, houve uma vantagem: a derrota nos "ajudou" a ver o atraso de nossas certezas. A ditadura e a depressão dos derrotados nos mostrou que o buraco era mais embaixo e que as forças da história eram mais labirínticas. A esquerda começou a se autocriticar (nem toda, claro - vide os soviéticos que ainda vicejam por aí).
Nos anos 70, a contracultura ampliou repertórios e códigos artísticos, pela loucura do "desbunde" e da subcultura hippie. Houve uma virada mais antropológica que ideológica.
De cabeça para baixo, vimos mais. Valíamos pelo que "não" tínhamos e, se antes éramos vítimas imaginárias do capitalismo, agora éramos vítimas reais da ditadura e passamos a ter uma meta: a liberdade.
Surgiu um novo ente: o mercado. Se Lenin disse que nada existe fora do poder, o capital respondia que nada existia fora do mercado. Para onde ir? O trauma da globalização foi mais profundo que a derrota de 64; ficamos mais informados politicamente, mais cultos, embora, para os mais burros, tenha renascido um neonacionalismo rancoroso e feroz, a ideologia cultural do "bode preto" reforçando conceitos superados: um "mix" de farrapos de esquerda, azedume "punk", pálida tristeza e anseios regressistas.
De repente, outra porrada no voluntarismo de intelectuais e artistas: não há mais futuro. Subitamente o presente nos atacou com uma enxurrada de vida liberada pela era digital na internet.
Sempre falávamos na democratização da cultura, das artes... Pois ela está aí... e não foi o Estado nem o ministério, nem anseios neorromânticos.
Ela esta aí... Bill Gates, Jobs, as redes, os microchips mudaram o mundo... Quem diria?
E agora a mutação é mais intrincada porque não há "uma" ideia nova, uma escola, uma tendência. A mutação atual é a "contribuição milionária" de todos os desejos expressivos. Mudaram todos os suportes, as formas se multiplicam sem parar criando novas significações.
Sabíamos que a era digital mudaria tudo, desde o mundo árabe até a poesia de Shakespeare? Mais uma vez, as coisas criam os homens... Todo mundo pode fazer arte, poesia e a internet é o novo parnaso digital.
Reação romântica: como fazer arte sem futuro, sem finalidade? Sem a ideia de "eterno"? Que será do artista demiurgo, aqueles "poucos falando para muitos", como dialogam Hermano Viana e José M. Wisnik? Agora, em que todos criam para todos, o que é "importante", como dizíamos? O que teria hoje ou amanhã o prefixo "Ur" (alemão) - as coisas fundadoras? Onde está a totalidade?
Há uma revolução de meios sem uma clareza de fins. Como será o mundo árabe? Como será a grande arte? Ainda haverá? Os meios justificam fins desconhecidos. E, vamos combinar, que mesmo na louvação das irrelevâncias, ainda dorme talvez o desejo de um sentido. Olha a encrenca... A própria ideia de um debate sobre essa dúvida já é antiga.
Se fosse proposta a um jovem blogueiro, ele diria: "Pra quê?".
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